Flávio Carneiro
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A Confissão, ou um vampiro carioca.
Vera Maria Tietzmann Silva.
Quatro ficcionistas goianos. Goiânia: Kelps, 2013.

O narrador não é o único vampiro, o próprio livro é um vampiro, nós o convidamos ao comprá-lo, somos seduzidos por ele (ele prende a nossa atenção) e sugados por ele (perdemos energia e tempo ao ler). E nós também somos vampiros, pois sugamos dos personagens as suas identidades (por diversas vezes nos sentimos como sendo [...] ou querendo ser protagonistas da história)".

(Juliana Ramos)

Ensino, pesquisa e criação literária são algumas das várias faces do goiano Flávio Carneiro, faces que revelam, sobretudo, um grande leitor. De fato, a maioria dos seus livros relaciona-se à leitura: sua tese de doutorado, publicada sob o título Entre o cristal e a chama, analisa uma seleção de personagens-leitores, colhidos em autores e obras ficcionais de sua predileção; seu livro infantil Lalande é construído em torno dessa palavra de ressonâncias misteriosas, criada por Clarice Lispector; seu romance policial O campeonato, que traz como situação conflitual um jogo de RPG, inspira-se em conto homônimo de Rubem Fonseca.
A bagagem de leituras de Flávio Carneiro é rica e variada. Por isso, ao aproximar-se de seus livros, o leitor precisa ficar atento às possíveis alusões a personagens, obras e escritores que o autor espalha discretamente ao longo da trama. Lembrando que "toda leitura é limitada pelo outro, pelo texto", ele próprio aconselha: "O mais importante não é o leitor ter toda a liberdade do mundo, mas dar-se conta de que as possibilidades de leitura beiram o infinito. Só assim é possível ler e escrever".
A confissão é seu romance mais recente. Foi lançado em 2006 e, no ano seguinte, classificou-se entre os dez finalistas da modalidade romance ao Jabuti, o mais cobiçado prêmio literário do Brasil. Em 2009 ele mais uma vez teve um livro classificado no Jabuti, desta vez conseguindo o terceiro lugar na modalidade juvenil com A distância das coisas. Sua atuação como crítico literário, professor do ensino superior (leciona na graduação e na pós-graduação em Letras da UERJ) e ficcionista (também é roteirista de cinema) é motivo de orgulho para Goiás e para a literatura goiana.

UM VAMPIRO SUI GENERIS
O vampirismo, um dos temas mais antigos e fascinantes, presente no imaginário popular de todos os povos, passou a circular na literatura de modo mais insistente a partir do Romantismo. Poetas consagrados, como Goethe, Shelley, Byron e Walter Scott escreveram sobre esse tema já no final do século XVIII. Em 1897, com a publicação de Drácula, de Bram Stoker, esse estranho personagem que se nutre do sangue alheio popularizou-se definitivamente em livros, palcos e telas de cinema, em versões que vão do terror à comédia. "Entrevista com o vampiro", de Neil Jordan, e "A dança dos vampiros", de Roman Polanski, são dois filmes de décadas diferentes que bem ilustram isso, enquanto "Nosferatu", do diretor alemão Felix Murnau, hoje um clássico do cinema mudo, foi uma das primeiras tentativas de transposição desse personagem para o cinema.
O vampirismo faz fronteira com outros temas afins, como o satanismo (porque o vampiro se apodera da alma da vítima), o canibalismo (porque se alimenta do sangue do outro), a imortalidade (porque protela a própria morte no processo), a metamorfose (porque o vampiro às vezes toma a forma de lobo ou de morcego) e o erotismo (porque ataca de noite e seduz a vítima). Todas essas possibilidades têm um denominador comum: são universalmente consideradas como manifestações do Mal.
Observa-se, no entanto, que Flávio Carneiro, em A confissão, atualiza esse tema de forma bastante inesperada e original. Seu vampiro narrador (cujo nome não é revelado) inicialmente desconhece essa sua natureza de predador. A verdade lhe chega quando já tem 19 anos. Primeiro, como uma vaga desconfiança, quando lê num jornal a notícia da morte de Emma, a jovem com quem tivera um relacionamento amoroso na véspera. Haveria uma relação de causa/efeito, ou tudo não passava de simples coincidência, obra do acaso? Logo ele passa a suspeitar que não existem coincidências na vida, nada acontece por acaso.
Também para o leitor a verdadeira natureza do narrador se desvela aos poucos. A primeira pista está na terceira página da narrativa, quando ele diz não se preocupar com a idade: "Essa questão do tempo já não se resolve mais do modo normal para mim [...] em breve seremos quase eternos" (p.11)1. Outras pistas se seguem, como quando declara sua preferência por vinho tinto (p.16) e, depois, quando faz menção à Romênia (p.27), detalhes que só farão sentido para o leitor mais adiante, quando o protagonista se descobre e se revela.
Intrigado com as circunstâncias da morte de Emma, o narrador faz pesquisas sobre o assunto na Biblioteca Nacional, mas só tem certeza de ser um vampiro quando a médica que o atendeu num acidente lhe confirma isso indiretamente, contando-lhe a história de sua amiga Luísa, que, segundo ela, morreu de amor.
Essa história, encaixada dentro da principal e acontecida na Itália com personagens que o narrador não conheceu, funciona como um espelho: ele se vê na imagem do jovem italiano Bruno e vê em Luísa uma réplica de Emma, que também morreu em conseqüência de uma noite de amor intenso. Nos encontros "casuais" fabricados por Bruno ele reconhece suas próprias manobras para aproximar-se de Emma.
Entre o típico vampiro da tradição e o de Flávio Carneiro existem pontos de semelhanças e de diferenças. A diferença mais notável decorre da escolha do ponto de vista, ou foco narrativo, neste romance. A perspectiva pela qual a história é narrada, que em geral é a da vítima, muda de lado e, por conseqüência, altera a visão do leitor.
Em A confissão, quem conta a história é o próprio vampiro e, por isso, o leitor tem a oportunidade de vê-lo por dentro - não como um monstro, mas como um homem, com seus conflitos e fraquezas. Em vez de frio, agressivo e cruel, como o lendário Drácula, ele é discreto, inseguro, sedutor. Acredita-se uma presa do destino, enredado em suas teias, e é justamente numa tentativa desesperada de livrar-se de sua sina que ele seqüestra a mulher a quem faz sua confissão.
O protagonista acredita ser possível reverter sua natureza porque não nascera vampiro, mas passou por um inexplicável processo de metamorfose, quando tinha 19 anos, ao viver sua noite de paixão com Emma:
Eu passava por uma transformação [...] não uma transformação meramente física, metamorfose, essas coisas exóticas e estúpidas das histórias fantasiosas, algo de verdade estava se modificando em mim, para sempre [...]. Emma foi a divisora de águas, o ponto limite, o lugar da travessia, e meu corpo estava se adaptando ao novo homem em que me transformara. (p.65)

Como se vê, trata-se de uma metamorfose mais sutil do que as dos vampiros que viram morcegos ou de homens que viram lobos. Sabe-se que os vampiros não gostam da luz forte do sol e têm, por natureza, os sentidos muito aguçados. Isso também acontece com o protagonista, que prefere os dias sombrios. Seus sentidos são igualmente aguçados, mas ele ressalva:
Não sou um homem normal [...], e se meus sentidos são mais aguçados do que os de qualquer homem, também minha tristeza é mais aguda, acredite, bem mais aguda do que se possa imaginar. (p.224)

O refinamento de seus sentidos, como o do paladar para comidas finas e vinhos raros, por exemplo, não é dom próprio, porém adquirido. Melhor seria dizer: roubado de suas vítimas. Aliás, ele havia começado sua vida, ainda adolescente, como um reles ladrão, furtando livrarias e sebos, ação que ele descreve eufemisticamente como um trabalho especial e agradável, um "exercício de mudar o endereço dos livros" (p.13). Depois de transformado em vampiro, continua ladrão - ladrão de almas. Note-se que se trata de atividades equivalentes. Muda apenas o grau do furto, enquanto a essência é a mesma, pois ele se apossa de conhecimentos, inicialmente armazenados em livros, depois em mentes.
Talvez fosse mais correto chamar isso de apropriação, ou incorporação, do que de roubo ou furto, pois no ato de sedução ele pratica uma espécie de canibalismo. O princípio é o mesmo dos antropófagos primitivos, que devoravam somente aqueles indivíduos por quem sentiam admiração. Comiam-nos para assimilar suas qualidades, para ficarem parecidos com eles. É exatamente isso que o narrador faz com as mulheres que seduz.
Assim, o refinamento de Emma em relação a comidas exóticas e bebidas sofisticadas é incorporado pelo jovem inexperiente, que não resiste a comprovar sua nova habilidade, retornando ao restaurante onde almoçara com a moça e pedindo o mesmo prato francês, o mesmo vinho raro da véspera.
Ao longo de todo o romance há uma insistência em comidas e bebidas vermelhas - sobremesa de frutas vermelhas, refresco de groselha e, sobretudo, vinho tinto. O leitor logo percebe que esses elementos funcionam como substitutivos simbólicos do sangue. Uma espécie de eufemismo, poderíamos dizer.
Desde a Antiguidade, o sangue tem sido identificado à vida, e sua cor rubra pode ser entendida simbolicamente ora como paixão, ora como violência. Da identificação sangue/vida possivelmente derivou o mito dos vampiros, que se nutrem de sangue para conservar seu vigor. Daí talvez também provenha a sua vinculação com o erotismo. Flávio Carneiro, aliás, faz prevalecer a vinculação do vampirismo com o desejo sexual, e não com a violência. O protagonista somente vai usar de violência com sua última vítima, a mulher a quem faz sua confissão, e com um motivo que ele explicita para ela e para o leitor.
Para algumas culturas, aliás, o beijo, que para nós é sempre demonstração de amor, pode revestir-se de conotações satânicas e canibalistas, o que se coaduna perfeitamente com o tema do vampirismo. Note-se como todas essas nuances de significado, mais o apelo irresistível da paixão e a força do destino, somam-se na cena que antecede a sedução, quando Emma, já meio embriagada, quebra o cálice, entorna o vinho e fere a mão. O narrador descreve a cena:
O líquido se espalhando feito um rio pela toalha de linho branco, como se fosse sangue sobre uma pele branca, e era sangue o que saía da pele de Emma, eu me aproximei, levei sua mão à minha boca e bebi cada gota daquele sangue, mergulhei naquele sangue, ele me arrastava - o sangue? o amor? - no seu curso violento, sem volta, sem saída. (p.40)

O efeito do encontro entre vampiro e vítima também foi inovado pelo autor. Nas histórias da tradição, como resultado do ataque, o vampiro suga o sangue da vítima (em geral morde seu pescoço) ao mesmo tempo que lhe inocula a sua maldição: a vítima também se converte em vampiro. A imortalidade maldita passa a ser compartilhada por ambos, como o contágio de uma peste fatal.
Em A confissão, o narrador não é agressor, mas amante. Absorve da vítima um conhecimento especial que ela tem e que ele deseja para si. Em contrapartida, ele a leva ao auge do prazer humano que o sexo pode proporcionar. Ele troca um conhecimento permanente por um momento fugaz de felicidade intensa. Mas, no caso do narrador, nem mesmo todo o conhecimento que ele acumulou em seus muitos anos de vida e de seduções serviu para dar sentido à sua existência, e ele sente uma funda nostalgia pelo seu tempo de juventude e de privações:
Naquela época, várias coisas me faltavam, mas eu estava vivo. Vivo de verdade, não como estou agora, este ser híbrido que não sei definir, essa mistura de vários destinos, pedaços de sonhos colados ao acaso, acho que é isso, me sinto como uma folha de papel em que uma criança foi colando recortes coloridos sem intenção de formar figura nenhuma. (p.232)

Essa vacuidade interior faz com que ele decida voltar ao início, sequestrar e aterrorizar uma mulher que conhecera de longe, no passado, e tentar, num último ataque - desta vez com violência - recuperar sua natureza humana, tornar a ser um homem comum. É para essa mulher impotente, amarrada numa poltrona diante de si que ele faz sua longa e surpreendente confissão
.
UMA CONFISSÃO INSÓLITA
A confissão é um relato de feitos passados (portanto aproxima-se da narrativa de memória) que tem como componentes essenciais a transgressão e a culpa. Quem confessa busca, pelo relato, entender o que fez e libertar-se de sua culpa, mesmo que, eventualmente, precise pagar algum preço pelo restabelecimento da sua paz interior. Assim, o título deste romance torna-se enigmático - afinal, quem confessa o quê? para quem? por quê?
A voz que fala ao longo dos dez capítulos do livro é a de um homem adulto de idade indefinida, que se dirige a uma mulher, que ele declara ter seqüestrado e amarrado a uma poltrona de sua casa, numa praia deserta do litoral do Rio de Janeiro. Como é próprio de toda narrativa confessional, ele demora a chegar aos elementos-chave de sua confissão. Contudo, também aqui Flávio Carneiro inova o padrão.
Em geral, numa narrativa desse tipo, o protagonista reluta em admitir sua culpa e vai protelando a revelação, valendo-se de vários artifícios, que incluem o encaixe de histórias paralelas e mudança de foco narrativo, criando um jogo de aproximação e de afastamento, retardando ao máximo chegar ao cerne de sua culpa. Neste romance, sem dúvida, há o relato de muitas histórias, mas elas se organizam cronologicamente, recuperando a trajetória de vida do narrador, desde o tempo em que ele era um jovem comum, recém-saído da adolescência. Há um propósito nisso, e não é o de simplesmente protelar a confissão nem de diminuir ou mascarar sua culpa.
A minúcia com que ele conta sua vida desde então, atendo-se apenas às vivências mais marcantes, tem o propósito de fazer sua vítima entender a absoluta necessidade que ele tem de fazer o que de fato fará, depois de virada a última página do romance. É uma espécie de macabra cortesia que ele presta a essa mulher - as vítimas anteriores não sabiam que iriam morrer depois de uma noite com ele, portanto isso é um gesto inédito de sua parte.
Mais do que cortesia, o leitor fica depois sabendo, ele precisa construir em sua vítima a sensação que ele não possui e de que desesperadamente necessita: o medo, o medo extremo que beira o terror. É esse o saber que ele quer sugar de sua vítima para poder voltar a ser humano. O romance se encerra antes que o vampiro consuma seu ataque, mas para o leitor não resta nenhuma dúvida quanto ao fim que espera essa mulher aprisionada.

QUEM CONTA A HISTÓRIA?
A escolha do foco narrativo costuma ser de fundamental importância para a boa realização de uma narrativa ficcional. Existem duas alternativas básicas: ou o narrador situa-se fora da trama, ou ele faz parte do elenco de personagens. Um texto confessional não permite mais de uma opção, ele é sempre narrado em primeira pessoa. Vimos já que também neste romance é o protagonista vampiro quem conta sua história, sob a forma de confissão, para a vítima que mantém prisioneira.
A opção pelo foco de primeira pessoa é uma situação peculiar, visto que o leitor só tem acesso à palavra do protagonista. Se por um lado a narrativa se torna mais convincente, por outro enfrenta algumas limitações.
Em A confissão, de imediato já se coloca uma dúvida quanto ao tipo de texto: é um fluxo de consciência? Um monólogo interior? Um monólogo dramático? Um solilóquio? - essas são modalidades discursivas em que uma única voz é ouvida. Verifica-se, porém, que não se trata de nada disso, pois o leitor não está mergulhado no pensamento do personagem, como seriam as duas primeiras alternativas, bastante recorrentes na ficção. Tampouco o protagonista está falando sozinho, ou pensando em voz alta, situações bastante exploradas no teatro. O próprio protagonista reconhece essa dificuldade, quando comenta: "Calhou a mim seguir por esse [caminho], que venho tentando delinear no nosso diálogo, ou no meu monólogo, para ser mais exato" (p.147).
Na verdade, tem-se neste romance um diálogo entre o vampiro e sua vítima, que apresenta a particularidade de a interlocutora jamais se manifestar, por mais que o narrador insista e se exaspere para que ela o faça:
Não interessa se a senhora não disse nada, eu sei que não disse nada, não sou nenhum maluco, a senhora não disse mas pensou, vi pelo seu rosto, pela expressão do seu rosto pude perceber claramente que a senhora pensou exatamente isso, e não gostei, e peço que retire já, agora, o que pensou sobre mim! (p.229)

Note-se que no trecho transcrito ele afirma não ser maluco, mas fala como se fosse, ou, pelo menos, como se estivesse à beira de uma crise histérica. Isso nos leva a outra questão, também pertinente ao foco narrativo escolhido pelo escritor, à questão da confiabilidade do narrador.
Como em Dom Casmurro, de Machado de Assis, em A confissão o leitor só tem acesso à palavra do protagonista. E, assim como Bentinho, ele não parece ser uma pessoa normal, dotada de equilíbrio e bom senso. Seu perfil não é (e ele repetidamente ressalta isso) de um homem comum.
Da imagem psicológica que dele fizer o leitor (É sensato? É neurótico? É louco?) vai depender a apreensão dos fatos narrados. Não consta que ele tenha sido alguma vez flagrado em delito ou acusado pela morte de qualquer de suas vítimas. Não há boletins de ocorrência, acusações, testemunhas - só temos a sua palavra quanto à veracidade dos fatos. Assim, tanto pode ser verdade o que ele conta, e então temos de admitir a existência de vampiros e de suas práticas, como pode ser tudo fruto de sua fantasia imaginativa ou de sua personalidade doente. Ele pode ser um vampiro, como alega, um desequilibrado com fantasias de grandeza ou um psicopata do tipo serial killer. Disso também depende entrar em questão classificar-se ou não esse romance como fantástico.
UM GÊNERO EVANESCENTE
O vampirismo, assim como a loucura, costuma ser incluído entre os temas recorrentes das narrativas fantásticas. Mas o que vem a ser o fantástico? O teórico Tzvetan Todorov afirma ser esse um "gênero evanescente", dura apenas o tempo de uma hesitação entre uma interpretação racional ou uma interpretação sobrenatural dos fatos extraordinários narrados.
O requisito indispensável para que se possa aventar a presença do fantástico é a ocorrência de um fato extraordinário, insólito. Em segundo lugar, é preciso levar em conta como esse fato impressiona protagonista e leitor. Conforme afirma Todorov, "o fantástico se define como uma percepção particular de acontecimentos estranhos"2. Exatamente por traduzir-se numa percepção dos fatos - e não nos fatos em si mesmos - é que a escolha do foco narrativo de primeira pessoa se mostra muito acertada no romance de Flávio Carneiro.
A percepção ambígua dos acontecimentos, levando à hesitação, principia no personagem e se estende ao leitor, e não se limita ao insólito de ele descobrir-se vampiro: isso é motivo de hesitação no início, mas logo o narrador se acostuma com sua nova natureza e passa a usufruir dela com naturalidade. Contudo, o clima fantástico se cria e se desfaz (ele é fugaz, evanescente) em diversos momentos da narrativa, na ocorrência de outros temas também recorrentes nesse gênero.
Além do vampirismo, outros elementos temáticos do fantástico também podem ser rastreados em A confissão, como, por exemplo, uma alegada separação entre corpo e alma (várias vezes o narrador diz ter de esperar por sua alma, que se atrasou) e a duplicação de si mesmo (ele se reconhece num jovem que vê numa adega). Esses são temas correlatos, que mostram o fracionamento do "eu", e este último, em particular, remete a um conto do escritor argentino Jorge Luís Borges, intitulado "O outro".
Nesse conto, que faz parte de O livro de areia, Borges conta uma experiência que diz ter tido (mas aí entra a questão dos limites entre o vivido e o inventado) em 1972, quando, já velho, senta-se diante do rio Charles, em Boston, e vê também sentar-se junto a ele, no mesmo banco, um jovem com quem começa a conversar. À medida que o diálogo avança, descobre que o jovem é ele mesmo - evidência que o jovem não é capaz de aceitar.
Certamente como homenagem a esse grande escritor, Flávio Carneiro também faz seu protagonista reencontrar a si mesmo como era na juventude, no tempo anterior a Emma. O encontro ocorre em seu retorno ao Rio depois de uma longa estada na Europa, num boteco sujo perto da pensão miserável onde havia morado, e assinala o momento a partir do qual ele decide alterar o rumo de sua vida:
[na] minha mesa de antigamente, um rapaz sentado, sozinho, bebendo vinho tinto gelado [...]quando levantou a cabeça e me olhou levei um susto: era exatamente igual a mim, tinha o meu rosto quando jovem, magro, branco, muito branco, uns vinte anos, senti um calafrio correndo por toda a espinha, era como se eu estivesse me olhando no espelho, num antigo espelho. Sou eu, falei comigo mesmo, aquele garoto sou eu. (p.193)

Diferentemente do personagem de Borges, este outro se esquiva, nega-se ao diálogo e foge pelas ruas, desaparecendo atrás dos portões da pensão. Em vão o narrador o procura, pergunta por ele: ninguém o conhece. A procura inútil no endereço conhecido repete, com variações, a busca que o narrador fizera, anos antes, por Emma e seu estranho destino no Estácio. Aliás, essas duas buscas também têm em comum o fato de acontecerem à noite, o que contribui para acentuar o clima de mistério, tão característico das narrativas fantásticas.
Outros temas próprios do fantástico são a assimilação da personalidade do outro - no caso, de um saber alheio; alterações na percepção do tempo (o narrador parece não saber mais sua idade e a contagem do tempo lhe parece irrelevante); alterações na percepção do espaço (ele não sabe qual a casa real que viu no Estácio). Porque só temos a palavra desse narrador, acima de todas essas situações, em si mesmas fantásticas, volta a indagação maior: ele é mesmo um vampiro ou ele é um louco que criou essa ficção para si?
Também a loucura é um tema frequente na literatura fantástica, sobretudo a suspeita da loucura, não a demência instalada. Isso porque não podemos confiar plenamente nos sentidos. A visão, em especial, nem sempre é confiável, sobretudo diante de fatos insólitos, motivo pelo qual Todorov incluiu o olhar, assim como seus substitutivos e acessórios (óculos, lentes, espelhos), entre os temas recorrentes do fantástico (TODOROV, 1992, p.115 ss).
As imagens relacionadas ao olhar muitas vezes trazem em seu bojo uma reflexão sobre a identidade e costumam sugerir também sentimentos de solidão. Esse tipo de cena se vê no último capítulo de A confissão, quando o protagonista acorda de um pesadelo, bebe um copo d´água e fica observando a cozinha através do vidro e da água do copo, ao mesmo tempo que reflete sobre sua vida (ver página 227).
A pouca confiabilidade dos sentidos, que muitas vezes nos enganam, transparece em muitas ações deste romance. As repetidas visitas do narrador ao subúrbio, para rever a casa onde Emma levara vinho na noite em que a viu pela primeira vez, retrata bem esse tipo de dúvida do protagonista em relação à sua percepção e à sua memória, uma dúvida que o faz vacilar no fino limite entre a sanidade mental e a loucura.
A hesitação própria do gênero fantástico, oscilando entre os pólos do racional e do sobrenatural, parece marcar toda a construção do romance de Flávio Carneiro, como veremos a seguir.

OS LABIRINTOS DA
A confissão é um texto que se organiza sobre duplicações, redundâncias, repetições, enquanto narra a busca do protagonista por uma saída para seu tormento interior. Nas idas e vindas de seu relato o leitor pode perceber uma construção narrativa que se assemelha a um labirinto.
Como apontamos no início, na ficção de Flávio Carneiro ocorrem alusões a obras e autores de sua preferência, e neste romance, as referências a labirintos, livros e bibliotecas, assim como ao duplo de si mesmo apontam, como vimos, a discreta presença de Borges.
A imagem do labirinto é evocada muitas vezes pelo narrador, mas em seus meandros ele atua tanto no papel de fera à espreita de incautos, como no de vítima à beira da captura. Seu poder destruidor de vampiro, então, relativiza-se, pois ele cumpre um papel que não buscou, que lhe foi imposto pelo capricho do destino (em várias passagens ele alude a isso), ele precisa ser o que é. Um Minotauro terrível e solitário, monstro que é meio homem, meio fera, preso em sua prisão sem saída.
Essa imagem é sugerida, por exemplo, pelas suas longas caminhadas. Ele declara gostar, desde a juventude, de andar sozinho, sem rumo, pelas ruas do Rio de Janeiro, seja a pé, de ônibus ou metrô. Depois da virada em sua vida, quando, possuindo Emma, ele se descobre vampiro, continua a manter o mesmo hábito, em suas viagens por cidades estrangeiras. Andando pelas ruas de Lisboa, ele próprio reconhece o simbolismo dessas suas caminhadas:
Andei pelos corredores da pensão [...] pelas ruazinhas da Alfama [...] entrando em vielas escuras e úmidas que iam dar numa praça, retomando em seguida os caminhos estreitos como se voltasse a um labirinto (único espaço, hoje sei, em que sempre me senti em casa). (p.160)

Em Bruxelas, onde se defronta com o estranho homem dos pombos cujo olhar parece devassar seus segredos, ele se sente acuado e anda em círculos, freneticamente, buscando uma saída, qual bicho enjaulado.
A saída desse labirinto onde se meteu ainda tão jovem, sina que o transformou em monstro solitário e assassino, está, conforme já se viu, na última vítima escolhida, aquela mulher amarrada à cadeira, por meio da qual ele pretende retomar sua primitiva natureza e sua fragilidade de ser humano. As cordas que a amarram são o seu fio de Ariadne.
Assim como os labirintos se constroem pelo cruzamento de caminhos semelhantes, que parecem multiplicar-se como uma sala de espelhos dos parques de diversões, A confissão também apresenta duplicações de personagens, cenários, situações. Podem mencionar-se, por exemplo, as seguintes reiterações.
O protagonista aparece bebendo vinho numa adega ordinária, primeiro em seu relato, ao falar dos tempos duros da juventude, depois na imagem de si mesmo que tem ao retornar da Europa e percorrer seus antigos trajetos no centro do Rio. Depois de seguir Emma até uma rua escura do Estácio, ele refaz o mesmo caminho por mais duas vezes, uma de dia, outra de noite, intrigado com o aspecto decrépito da casa, que não percebera na primeira vez. Ele vai duas vezes ao mesmo restaurante sofisticado, a primeira com Emma, e a segunda, sem ela, para testar seu novo sentido de gustação. Nessas duas idas, repete o mesmo cardápio e o mesmo vinho. Duas vezes ele usa clorofórmio, para sedar primeiro a filha, depois a mãe. Na sua narração, o último fato aparece primeiro, portanto em seqüência invertida. A mulher que seqüestra aparece em dois tempos e dois lugares diferentes, na primeira vez sendo-lhe superior, depois na condição de vítima. São, portanto, repetições invertidas. Acontecem-lhe dois momentos de revelação, associados a quedas e desfalecimentos, o primeiro quando descobre que será o assassino da mulher que vê dentro do restaurante, a segunda quando Agnes o socorre na rua e ele percebe que ela sabe seu segredo. Na primeira revelação, ele tem um vislumbre do futuro, sabe o que fará; na segunda, ele tem a confirmação de sua identidade, ele sabe o que é. O próprio protagonista declara ter vivido duas vidas, uma antes de Emma, outra depois dela. E há duas mulheres que ele conhece em tempos distintos, mas que têm nomes equivalentes, Agnes e Inês. Esta última é filha da mulher que ouve a confissão, ou seja, o predador ataca duas vezes a mesma família, embora tomando atitudes opostas em relação às duas vítimas.
Na construção desta narrativa há duplicações bem evidentes, outras mais sutis. O tempo e o espaço, por exemplo, duplicam-se entre o presente vivido e o passado rememorado/narrado. O presente é estático, resume-se ao tempo da narração ("poucas horas [...] posso lhe assegurar que serão poucas", o narrador diz à vítima) e ao espaço da sala de uma casa de praia isolada, onde apenas há um homem que fala e uma mulher que escuta. Já o passado é dinâmico, como um longo seriado de TV, onde um protagonista repete incansavelmente o mesmo script, contracenando em cada episódio com atrizes coadjuvantes diferentes em sucessão e movendo-se em cenários diversos.
Esse artifício faz com que a narrativa como um todo não se torne monótona e "engessada" pela situação estática do presente. De fato, o dinamismo da narração vai intensificando um clima de suspense em relação ao desfecho que se aproxima.
Como em um labirinto, a entrada e a saída são a mesma passagem, para sair dele é preciso retornar. Resulta daí a circularidade deste romance, que retoma o início, fazendo também o leitor voltar aos capítulos iniciais para encontrar a ponta do fio narrativo. Como no mito do labirinto de Creta, o segredo para sair dele depende de uma mulher.

O VAMPIRO E AS MULHERS
As encruzilhadas do labirinto deste vampiro carioca são assinaladas pelas mulheres que conhece. Vejamos algumas delas, começando pela que se encontra à sua frente, amarrada a uma poltrona, no momento da narração.
Quando o protagonista cobra da mulher que sequestrou o fato de ela não lhe haver outrora ensinado o que pedira, impedindo-o de entrar por esse caminho, o leitor, intrigado, precisa retornar ao primeiro capítulo, para descobrir quando ele a vira pela primeira vez. Seu primeiro encontro com essa mulher se deu sem que ela o percebesse, enquanto ele a observava através das paredes envidraçadas de um restaurante caro:
Vi uma mulher sozinha numa mesa.[...] Criei a biografia daquela mulher, eu em pé, do lado de fora, olhando.[...] era a senhora que levava a taça aos lábios num gesto suave e firme [...] Eu a olhava suplicando, eu queria saber o que a senhora estava pensando naquele momento [...] o que estava sentindo depois de ter depositado a taça sobre a mesa [...] nesse instante falei baixinho, ninguém ouviu, não havia ninguém perto de mim, olhei bem na sua direção e disse: me ensina, por favor. (p.19)

A cena em si é banal, numa sociedade como a nossa, marcada pela divisão de classes sociais, mas para o protagonista teve a força de uma revelação, de uma epifania. A indiferença da mulher, que nem percebeu sua presença, frustrou-o. Depois do pedido silencioso, feito em tom de prece, ele conta que lhe veio à mente uma verdade tão funda que ele sentiu-se desfalecer: "Foi uma verdade que me atravessou o futuro, irremediavelmente, e que era [...] uma constatação pura e simples, era esta [...]: um dia vou matar essa mulher" (p.20).
Portanto, nas primeiras páginas do romance, sem que o leitor ainda se dê conta disso com clareza, o desfecho já está decidido. Não haverá um final feliz para essa mulher que ouve a confissão. O seu fim, que acontece depois do último capítulo, não precisa ser escrito porque estava declarado desde o princípio. Cumprir esse destino, além disso, em termos de construção narrativa, confirma a circularidade do texto.
Esta mulher ata as pontas da história, é a primeira na experiência narrada pelo protagonista e é também a primeira no contato do leitor com este livro. As outras mulheres que sobressaem na trama e são nomeadas - das incontáveis que ele deve ter seduzido - são Emma, Agnes e Inês, além de Luísa, cuja história, narrada por Agnes, funciona como um espelho onde o protagonista percebe melhor sua própria situação, conforme se viu.
Vejamos agora como essas várias mulheres e suas histórias se articulam entre si e se ajustam ao padrão circular e repetitivo (labiríntico) deste romance. Como fizemos em relação ao argentino Borges, para entender as possíveis articulações entre as diversas mulheres do vampiro, será preciso enveredarmos por alguns desvios nesta exposição, relacionados a discretas alusões que o autor faz a alguns autores e obras de domínio público.
De imediato, pelo menos dois detalhes chamam a atenção do leitor em sua primeira leitura de A confissão: a insistência na menção a livros e a escassez de personagens que têm nome. Entre essas, incluem-se quatro mulheres. Essas duas peculiaridades, em nosso entender, não são fortuitas (o próprio vampiro gosta de afirmar que não existem coincidências), mas constituem elementos que ajudam a compor uma sutil rede de significações, as quais, por sua vez, harmonizam-se com o perfil do autor, Flávio Carneiro, que sempre foi um ávido leitor.
Vimos já que o ato de vampirizar as mulheres que ama e de furtar livros em sebos, livrarias e bibliotecas são, a rigor, a mesma coisa, constituem apropriações de conhecimento. Roubar livros, para o protagonista, então, pode ser visto como um ensaio, um ato preparatório ao vampirismo que irá exercer a partir da sedução da primeira vítima, a jovem Emma.
Este nome, tão pouco comum no Brasil (sobretudo assim, grafado com dupla consoante), pode ser encontrado nas heroínas de dois romances, um de Jane Austen, ambientado na Inglaterra vitoriana, e outro de Gustave Flaubert, do período realista da literatura francesa. O elo de ligação com o personagem de Flávio Carneiro sem dúvida é a heroína francesa, e essa indicação é dada pelo livro que o narrador roubou de sua casa na noite de sua morte e que ele ainda conserva consigo.
Isso sem dúvida é um detalhe significativo, caso contrário o escritor não teria incluído na trama. O livro que pertenceu a Emma é o ensaio "De l´amour" ("Sobre o amor"), do também francês Stendhal, um escritor que, como Flaubert, situou sua obra no século XIX, na transição do Romantismo para o Realismo.
Neste ensaio, publicado em 1822, Stendhal descreve "o nascimento do amor", ou a "cristalização" da imagem do ser amado na mente do amante, comparando esse fenômeno com uma viagem a Roma, cidade que, na sua opinião, representa a perfeição do amor. Esse detalhe remete à história de Luísa, à qual voltaremos adiante, que decide ter sua experiência de "morrer de amor" justamente em Roma.
Provavelmente escrito a partir de uma experiência própria de paixão romântica, em "De l´amour" Stendhal faz uma análise realista de um tema romântico. Pode-se dizer que algo semelhante também faz o protagonista de A confissão, em sua narrativa toda ordenada metodicamente e, até diríamos, didaticamente, na qual discorre sobre temas românticos por natureza: o vampirismo, o destino, o amor, a morte. Mais: ele faz em seu relato a sobreposição desses temas, potencializando-os - a morte por amor nos braços de um amante-vampiro, que assim age movido pelo destino.
Se, em vista dessas considerações, admitirmos que as vinculações do nome de Emma se fazem com o romance francês, e não com o britânico, quais seriam esses elos?
Na literatura francesa do século XIX, Emma é a protagonista de Madame Bovary, romance que provocou grande escândalo na época. Sua protagonista é uma mulher superficial que tem a mente impressionável povoada de idéias tiradas de folhetins românticos. Por influência de tais leituras e para fugir da banalidade e do vazio de sua vida provinciana, ela busca aventuras extraconjugais e ascensão social, numa vida acima de suas posses, que culmina com sua derrocada e suicídio. Para defender-se das acusações que lhe foram feitas à época, o autor, Gustave Flaubert, teria dito: "Emma Bovary sou eu". Ora, em A confissão, também o protagonista poderia dizer "Emma sou eu", depois de absorver seus conhecimentos sofisticados, apropriar-se de seu dinheiro e da refinada edição de Stendhal.
Outro nome que remete a um famoso romance do Realismo europeu é Luísa. É ela a heroína de O primo Basílio, de Eça de Queirós, personagem que apresenta muitos pontos de semelhança com Emma Bovary, sobretudo nas suas leituras românticas, na insatisfação com um casamento morno, nas escapadas extraconjugais e no final infeliz. A grande diferença, no caso da Luísa criada por Flávio Carneiro em relação à sua homônima literária é sua expressão na morte. Ela não é uma vítima abatida pelo destino, sofredora e derrotada, como a de Eça, ao contrário, a cena presenciada por sua amiga Agnes evidencia um final feliz:
Agnes [disse] a voz cansada de Luísa chamando. Agnes, repetiu à amiga, deitada na cama, nua, um lençol cobrindo parte de seu corpo. Agnes se aproximou, sentou-se na beirada da cama ainda a tempo de ver nos olhos semi-abertos de Luísa um brilho intenso, e no seu meio sorriso algo como a própria expressão de felicidade, antes de morrer. (p.94)

Essa cena é simétrica à que o protagonista vivenciara pouco antes de Agnes lhe contar sobre a morte da amiga. Bruno, Luísa e Agnes correspondem ao narrador, Emma e seu noivo, que chega quase a tempo de flagrar o protagonista esgueirando-se para fora da cena do crime. A percepção da semelhança das duas histórias atinge-o imediatamente, o que deflagra o início de um envolvimento com Agnes, a seguinte mulher nomeada.
Luísa também é adepta de leituras, como relata Agnes ao narrador, mas não de histórias românticas, como as protagonistas francesa e portuguesa, porém de histórias de vampiros. E, assim como ele conserva o livro de Emma por muitos anos, Agnes também conserva um livro de Luísa, igualmente em francês, La morte amoureuse, de Théophile Gautier. Este livro narra o envolvimento de uma mulher vampiro com um padre, um caso de possessão satânica.
A proximidade de Agnes e Luísa, em alguns momentos do relato, parece sugerir um relacionamento homossexual latente entre ambas, detalhe que se repete, com os mesmos traços imprecisos, em idêntica impressão que Agnes tem de Bruno, quando vai despedir-se dela no aeroporto de Paris, depois da morte de Luísa:
Estava acompanhado de um outro rapaz, mais ou menos da mesma idade, bonito. Pelo modo como o outro colocou sua mão, suavemente, sobre o ombro de Bruno, Agnes percebeu que eram um pouco mais que amigos. (p.96)

São, mais uma vez, reiterações, que se fazem como os caminhos dos labirintos, com variações, dando pistas que podem ser falsas ou verdadeiras.
A convivência com Agnes em sua convalescença traz uma crescente proximidade entre eles, que acaba por convertê-la na segunda vítima do protagonista. Contudo, é uma vítima diferente, que se entrega de livre vontade, que se oferece a ele, sabendo perfeitamente o que a aguarda. Poderíamos dizer que é uma vítima em sacrifício, daí seu nome, Agnes, que vem do latim agnus, o cordeiro a ser imolado. Ela se entrega a ele para dar-lhe o conhecimento sobre si mesmo que ele desejava ter e para, ao mesmo tempo, reunir-se a Luísa.
A seguinte mulher com nome na confissão do vampiro é Inês, nome que é uma variação de Agnes e que também, portanto, significa cordeiro. Essa Inês é muito jovem, mal saída da adolescência, e estuda música. O narrador aproxima-se dela como por acaso, seguindo aquele velho jogo de cartas marcadas que Bruno usara em Roma com Luísa e que ele próprio tantas vezes repetira. A menina cai na armadilha e revela-se mais esperta do que ele, pois, a despeito de todas as suas precauções, ela descobre seu endereço e vai procurá-lo em sua casa de praia, bem distante do Rio.
A descoberta de sua bem guardada identidade, o reencontro com seu duplo juvenil e a constatação do parentesco entre a jovem musicista e a mulher do restaurante são fatores que, somados, levam o protagonista a matar Inês de outra maneira, negando-se a ela, narcotizando-a e devolvendo-a à sua própria casa.
Esses breves dados apontados nas mulheres com quem o vampiro se relacionou reforçam o caráter circular deste romance, pelas correspondências que podemos estabelecer entre elas.
Se levarmos em conta o início e o fim da trajetória vampiresca do narrador, veremos que Emma e a mulher seqüestrada se equivalem, pois ocupam as duas pontas da narrativa, uma é a primeira, a outra é a sua última vítima. Com uma diferença a mais, além da idade: Emma se entrega por amor e nada sabe do fim que terá por fazer isso; a mulher será tomada com violência, ciente do que lhe irá acontecer. Trata-se de uma equivalência pelo avesso.
Seguindo essa sequência cronológica, vemos que Agnes e Inês, cujos nomes vimos serem sinônimos, também se equivalem, pois ambas praticamente forçam o narrador a possuí-las. Novamente a idade é um diferencial entre ambas, uma é uma mulher madura, a outra é extremamente jovem, mas se assemelham na ordem: uma é a segunda, a outra é a penúltima. A diferença maior, que é uma simetria pelo avesso, mais uma vez, é que a primeira ele aceita, porque quer ter acesso ao seu conhecimento sobre vampiros, isto é, sobre si mesmo, enquanto a outra ele rejeita, porque quer dar um fim à sua sina. O parentesco entre as duas últimas mulheres do narrador, Inês e sua mãe, dá um tom de ironia que beira o humor negro. É a crueldade maior com que ele encerra a sua carreira de vampiro psíquico, o que rouba as mentes e as emoções das vítimas. Embora permaneça viva, a jovem Inês foi talvez a mais fundamente espoliada de todas as mulheres deste narrador, pois que foi roubada de suas ilusões amorosas e da família que tinha. Essas aproximações revelam a cuidadosa construção deste romance e a competência de seu criador.
Ao término desta leitura de A confissão, de Flávio Carneiro, que em absoluto pretendeu ser exaustiva, o leitor pode fazer algumas reflexões. Vimos que o protagonista se julga vítima do destino, e desabafa:
Até que ponto tinha decidido algo na minha vida? [...] Não tinha como duvidar, algo ou alguém estava guiando meus passos, era essa a conclusão a que havia chegado finalmente, não mandava em nada, não podia mandar em nada, nem em mim mesmo, nem na minha vida, nem na minha morte. (p.227)

Ora, esta é uma descoberta que, mais dia menos dia, todos nós fazemos. O bem e o mal nos habitam, em algumas pessoas essa dualidade é sentida com mais veemência, como é o caso do protagonista deste romance.
Essa dualidade impede que ele seja rotulado de herói ou de vilão, de monstro ou de vítima. Ele é um pouco disso tudo, é capaz de ferir e também de amar. É o vampiro que suga suas amantes e é também o adolescente tímido que bebe um vinho de má qualidade num copo engordurado. É justamente essa face humana que Flávio Carneiro soube imprimir a seu triste vampiro que torna este romance tão original e tão atraente ao leitor.




Notas
1. Todas as transcrições do romance em análise trarão apenas a indicação do número da página onde se encontram.
2. Todorov, 1992, p.100.

Referências
BORGES, Jorge Luís. Obras completas. Vol.3. São Paulo: Globo, 1999.
CARNEIRO, Flávio. A confissão. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
_____. Acorda, Rita! Rio de Janeiro: Globo, 1986. (infanto-juvenil)
_____. Da matriz ao beco e depois. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
_____. A casa dos relógios. São Paulo: FTD, 1999. (infanto-juvenil)
_____. Lalande. São Paulo: Global, 2000. (infanto-juvenil)
_____. No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
_____. Entre o cristal e a chama. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.
_____. O campeonato. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
_____. O livro de Marco. São Paulo: Global, 2003. (infanto-juvenil)
_____. Prezado Ronaldo. São Paulo: SM, 2006. (infanto-juvenil)
_____. A distância das coisas. São Paulo: SM, 2008. (infanto-juvenil)
RAMOS, Juliana. A confissão em A confissão, de Flávio Carneiro.
http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/a82.htm
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.



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